(Contém spoiler. Se você ainda não viu o filme Logan, não leia. Tem outro aviso mais
pra frente, mas já deixo avisado desde já!)
Eu tinha separado esse texto para falar da minha experiência
(fantástica) de ter virado a noite dançando numa balada anos 80 aqui de São
Paulo, mas urge que eu fale de outro assunto.
Para tal, necessito retornar no tempo e apresentar a Deborah
de 17 anos atrás.
Em 2000, eu tinha 10 anos de idade. Era uma pequena
nerdzinha, fã de animes, mangás e HQ’s (sim, é possível, vai por mim). Curtia
muito as séries, de qualidade questionável, que eram baseadas em jogos (Mortal
Kombat, por exemplo) e estava naquela fase de me espelhar nos meus personagens
preferidos. Era o começo daquela fase chatinha da adolescência, onde a gente
quer se encaixar e pertencer a algum grupo. Você deve estar pensando que foi
fácil, já que coisinhas nerds estão na moda e que é cool saber de cor e salteado os nomes de golpes do Goku. Mas em
2000 isso era meio complicado. Ser nerd não era legal. Desenhos e quadrinhos
eram associados à infância, e aos 10 anos de idade, quando você é menina,
existe uma pressão bem grande para que você vire “mocinha”.
Desenhos de luta não eram pra mocinhas. Histórias violentas
não eram pra mocinhas. Super-heróis não eram pra mocinhas. E eu deveria ser uma
mocinha. Mas eu não era (e seguindo a lógica, continuo não sendo).
Sempre fui ensimesmada e isso dificultava muito meu
entrosamento. Além do que, na minha sala, não tinham garotas que curtissem as
mesmas coisas que eu. Elas precisavam ser mocinhas. Eu que não era.
Aos 10 anos de idade, além do problema de ser mocinha, eu
lidava com uma doença renal complicada. Era algo com o qual minha família e eu
convivíamos desde meu nascimento e que, até então, só evoluía... Pra pior.
Existia uma dúvida e uma ameaça velada ao meu bem-estar. Não era incomum que eu
sumisse da escola ás vezes porque as crises de febre me acometiam, e eu ia
parar no hospital. Quando voltava, era repouso por um bom tempo. Eu não podia
viajar para muito longe, não podia comer uma série de coisas e nem praticar
alguns esportes. Dificilmente ia dormir na casa dos colegas, ou até passar a
tarde fazendo trabalhos porque as crises poderiam vir a qualquer momento. Numa
fase em que você está tentando se encaixar, nada disso que descrevi era um
facilitador.
Mas eu tinha meus refúgios.
Os dias que eu ficava afastada da escola eram toleráveis
graças aos desenhos que passavam na tv aberta. Era bom porque eu tinha minhas
revistinhas em quadrinhos e eu podia criar uma série de estórias envolvendo meus
personagens preferidos. E no ano 2000 eu estava na fase X-Men.
Porque eles eram mutantes. Eles eram imperfeitos. Eles
sofriam com aquelas imperfeições, que os tornavam tão especiais. Na minha
cabeça de criança portadora de uma má-formação congênita, eles eram iguais a
mim. Eu também era uma mutante, porque nasci diferente e lidava com essa
diferença desde que me conhecia por gente.
Quando soube que teria um filme dos X-Men, com atores de
verdade, eu pirei. Guardei até a reportagem do jornal que anunciava o grande
feito do cinema atual, com uma série de efeitos visuais dificílimos de fazer.
Era uma foto da Tempestade (diva), minha mutante preferida <3 o:p="">3>
Lembro que no dia da estreia, eu estava numa daquelas
crises. Febre alta, dores nas costas e cheia dos antibióticos e antitérmicos.
Minha mãe não achou uma boa ideia nós irmos ao cinema naquele dia, mas a
expectativa era tanta que minha avó resolveu acompanhar. Lembro até do
refrigerante que compramos para tomar durante o filme, e da pipoca doce com
caramelo meio queimado. Quando algum personagem aparecia, eu tentava explicar para
minha avó quem era, e quais os poderes. Fui à loucura quando a Tempestade
embranqueceu os olhos e eletrocutou o Groxo. Saí do cinema e, no dia seguinte,
estava no P.S. da Santa Casa de São Paulo.
O tempo foi passando. O segundo filme da série saiu, e eu
fui com alguns colegas da escola e com um ex-namorado. Era uma fase ruim da
minha vida. Além dos problemas de saúde, minha família atravessava problemas
financeiros complicadíssimos, e eu vivia uma relação complexa demais para
elucidar aqui.
Quando O Confronto
Final estreou, eu fui ver com um grande amigo meu. Também na estreia.
Cinema lotado, no Shopping Santa Cruz. Minha avó tinha falecido poucos dias
antes. Foi difícil lidar.
Quando me formei no EM e ingressei na faculdade, tive meus
anos de glória na nerdice. Conheci pessoas com gosto muito parecido com os
meus, os filmes que eram adaptações de HQ’s e jogos pipocavam e a internet
facilitou demais meu acesso ao material mais raro de encontrar por aqui. Foi a
época em que eu reclamei dos filmes mal adaptados e dos enredos sem sentido. Foi
a época em que perdi as esperanças de ver meus personagens preferidos
retratados de uma maneira eloquente nas grandes telas. Foi quando eu desisti de
ver um mutante representando aquela família que X-Men sempre mostrou para mim.
Dezessete anos depois me deparei com Logan.
Aos 27 anos de idade, hoje, me encontro em uma situação
muito diferente daquela menina de 10 anos. Tenho uma saúde excelente. Diferente
da época em que fui ver o segundo filme, estava cercada de pessoas que amo
profundamente. Diferente daquele dia enlutado do terceiro filme, eu estava
feliz.
SPOILER! SPOILER! SPOILER!
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Eu pude sentir, plenamente, todas as emoções que esse filme
proporcionaria a uma fã como eu, que cresceu e acabou criando laços muito
íntimos e pessoais com aquele universo. Ver, com uma ótica adulta, o que teria
acontecido com o Logan e o professor Xavier, mesmo que tamanha a decadência, me
fez ver que o tempo passou. Eu pude ver, finalmente, uma família de mutantes,
por mais torta e desgarrada que parecesse.
Curiosamente, a mutante caçada pelos carniceiros é uma
menininha, a X-23. Uma menina que, assim como a Deborah de 10 anos, não é uma
mocinha. Uma menininha que desce a porrada em todo mundo. Uma menina que passou
por uma série de experiências terríveis num ambiente hospitalar e que
(obviamente) por mais fantasiosas que fossem, me lembraram muito os exames e
tratamentos mirabolantes aos quais a comunidade médica me submeteu ao longo da
minha infância/adolescência. Foi bem difícil não me ver nela; não lembrar da
Deborah de 10 anos de idade que se espelhava nos mutantes fantasiosos como uma
válvula de escape para uma realidade nada favorável.
Quando o professor se foi, eu vi toda a sabedoria que minha
avó representou ao longo da minha vida.
Quando chega a vez do Logan, e a X-23 muda a posição da cruz
para fazer um “X”, ela enterrou uma parte do meu passado. Não que isso seja
ruim, porque não é. Esse meu passado sempre vai estar ali, para mim. Mesmo que
eu quisesse apagá-lo, ele estaria.
Foi bom porque a menininha seguiu em frente. Mudada pelas
adversidades da vida dela, mas seguiu. Foi o que eu tive que fazer.
Vi uma entrevista que o Hugh Jackman deu aqui no Brasil onde
um fã disse que se despediu de um grande amigo em Logan.
Eu me despedi de um passado extremamente doloroso. Mas que
me fez o que sou hoje.