domingo, 28 de agosto de 2011

Entre prazos de validade e galhos

Gente deveria vir com prazo de validade marcado na pele. Assim, eu não perderia meu tempo com certas pessoas, já sabendo que minha relação com elas duraria pouco tempo, mesmo eu mantendo-as longe do alcance de crianças e em lugar fresco e arejado.
O problema de a gente não saber se alguma de nossas relações interpessoais estão vencidas, é que acabamos por consumir um produto estragado sem saber. E quando percebemos, já estamos com um nó no estômago e um gosto amargo na boca, daqueles que impregnam no fundo da língua e anticéptico nenhum consegue tirar. A única solução é raspar... Mas isso dói.
Uma relação minha venceu recentemente. Bem... Se eu for avaliar profundamente, o produto do qual eu estava me embebedando em "amizade" já havia vencido há muito. Eu é que não percebi.
Nesses dois últimos dias vivi um turbilhão de emoções, sendo que nenhuma delas foi das mais agradáveis. Passei da indignação à mágoa, e depois da mágoa a nostalgia, para enfim me enterrar no ódio, seguido da letargia pós-dor.

Dói.

Sinto-me como um pequeno arbusto, daqueles que a gente compra nas feiras livres. Todos muito viçosos em simples vasos de barro ou cerâmica, mas que toda boa criança ou sacola gosta de arrancar um galho. A cada galho, uma fisgada. A cada fisgada, uma sensação de impotência, de indignação. E depois a solidão da recuperação... Cicatrizar o que não pode ser cicatrizado. Feridas que jamais se curam, mas que ficam ali, marcadas, como um enfeite sádico da vida.
Arrancaram mais um de meus belos e viçosos galhos, e não sei se tenho forças suficientes para vê-lo morrer, caído no chão, separado de meu tronco. Mas graças a minha forma egoísta de encarar o mundo, prefiro ver meus galinhos morrerem diante de meus olhos, do que vê-los sendo carregados, nas mãos de um moleque qualquer, que o arranca e o leva. O conserva em um copo d'água, crendo ser aquele o melhor lugar para ele.
Mais um galho foi arrancado. E agora o vejo nas mãos (justamente) de um moleque qualquer, que o leva para longe... Para dentro de um profundo copo de promessas e dúvidas.

A mim, resta o gosto amargo e a cicatriz... Algo que só o tempo vai poder tirar ou curar.

Agora, sou uma árvore quase seca. Como aquelas que a sua vizinha chata faz questão de jogar golfadas de água quente nas raízes.
Minhas raízes estão queimadas... Meus galhos arrancados, mas as poucas flores que ainda permanecem, me tornam a árvore mais bonita da cidade.

Meu galinho morreu.

Só não sabe disso ainda.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Abaporu e Eu


Depois de muitos meses e litros de lágrimas e suor, estou voltando, mas não sei se essa volta é permanente. Estou aqui pois tenho a necessidade psicológica, e porque não dizer, física de escrever o que sinto nesse momento da minha vida.
Há uns dias, fui demitida do meu emprego de professora contratada no Estado de São Paulo. Um grande equívoco com meu contrato, que não vem ao caso agora. Também iniciei mais uma etapa acadêmica da minha vida, minha Pós-Graduação em História da Arte. Tudo estaria bem, se não fosse essa estranha sensação que domina minha mente, minha alma e meu coração.
Aquela boa e velha indagação, por vezes associada à adolescência: quem sou eu?
Em uma de minhas aulas, acabei por me deparar novamente com o quadro da Tarsila do Amaral, o Abaporu. E tive a minha primeira experiência de fruição, que independeu ou ignorou meus conhecimentos prévios de leituras históricas e artísticas acerca do Modernismo.
(A partir daqui devo deixar claro que essa é uma leitura muito pessoal da obra, que em nada, ou quase nada, tem a ver com a proposta modernista de suas obras)
Em meu exercício experimental de curadoria, pude notar como o Abaporu é triste. Mas, a princípio, não soube o porque. E foi então que, analisando sua situação como um ser vivente e ciente de suas condições e proporções descomunais, comecei a pensar se ele não seria triste por isso. Uma criatura disforme, emoldurada eternamente para a admiração e a repulsa alheias... Criatura incompreendida e incapaz de mudar, presa física e emocionalmente naquele estado vegetativo; o estado de contemplação (alheia).
Seriam seus pensamentos próximos a conformação, como sugerem as posições de seus braços e de sua cabeça, levemente reclinada, enquanto seus olhos tristonhos e vazios contemplam o nada? Saberia este pobre Abaporu, que o mundo o vê como um monstro? Que o mundo o julga como o símbolo do desgraçado povo brasileiro? Será que Abaporu gosta desse seu estigma?
Triste Abaporu, ciente de sua monstruosidade e de todo seu significado para a arte mundial... Sem poder, ao menos, ser feliz. Abaporu sabe que sua situação não vai mudar, sabe que, para ele, nada mais tem jeito. Sabe que sua vida está acabada ali, sem ao menos tê-la vivido. Abaporu é triste.
E aqui eu caio, novamente naquela minha questão: quem sou eu? E eu vos respondo. Eu sou Abaporu.
Um misto de sentimentos desconexos e pensamentos sem forma, que se misturam e acabam por criar um ser sem definições exatas, que desafia a compreensão alheia e os sentidos daqueles que se atrevem a entendê-los.
Enquanto tentava seguir minha graduação, meus professores sempre me chamavam a atenção para meu alto grau de poesia em meus escritos acadêmicos. Intitulavam-me rebelde. Pediam-me maior precisão e rigor acadêmicos. Agora que estou na minha especialização, meus professores me pedem mais poesia; pedem que eu seja menos metódica, e que eu sinta mais.
E quem que é a criatura que não sabe mesmo o que quer?! Sou eu?
Quem não tem, ainda, pensamentos e sentimentos definidos? Eu? Meus professores? O mundo com relação a mim, ou eu com relação ao mundo que me cerca?
Eu sou o Abaporu.

Sou (mesmo) eu, o Abaporu?



"Abaporu", pintura de óleo sobre tela de Tarsila do Amaral, 1929. Coleção Particular